O cancelamento do show do cantor de Gusttavo Lima em Campo Alegre de Lourdes, na Bahia, reacendeu os holofotes em torno da questão da utilização do recurso público para o pagamento de shows, festas populares, rodeios e atividades culturais.
A ação em questão, movida pelo Ministério Público estadual, determinou a anulação do show em comemoração à padroeira do município, que estava estipulado em R$ 1,3 milhão.
Na decisão, o juiz Vanderley Andrade de Lacerda afirma que o recurso seria superior ao orçamento da Secretaria Municipal de Cultura e que o contrato teria sido assinado dias após a cidade ter decretado estado de emergência, em virtude da estiagem que gerava prejuízos na pecuária e na agricultura.
Quem tem limite é município
A prefeitura local e os promotores do evento argumentaram que seguiram os trâmites legais, uma vez que a contratação de shows de artistas consagrados pode ser enquadrada legalmente como inexigibilidade de licitação, ou seja, a contratação direta, conforme prevê a Nova Lei das Licitações (Lei nº 14.133/2021).
Quanto ao cachê, o custo se eleva porque a prefeitura costuma bancar transporte, hospedagem, camarim, segurança e tudo aquilo que o contrato exigir.
O único controle fiscal acaba sendo a prestação de contas do município, que pode ser questionada pelo Tribunal de Contas, pela Câmara de Vereadores ou mesmo pelo Ministério Público, como foi o caso de Campo Alegre de Lourdes.
CPI do Sertanejo
O caso de Campo Alegre de Lourdes não foi o primeiro e certamente não será o último capítulo dessa novela. Recentemente, o termo “CPI do Sertanejo” foi usado para designar uma operação do Ministério Público do Mato Grosso para investigar 24 prefeituras do estado por contratações de shows com cachês considerados “milionários”. Os MP de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima também seguiram a mesma moda.
Em Casimiro de Abreu (RJ), o juiz Rafael Azevedo Ribeiro Alves proibiu a prefeitura da cidade de usar verba pública para pagar despesas relacionadas à uma exposição agropecuária, alegando que “o direito ao lazer não pode se sobrepor a direitos fundamentais como educação e saúde, em especial quando o país passa por crise econômica”.
O Ministério Público do Amazonas conseguiu proibir o uso de verba pública para pagar shows da Festa do Cacau, em Urucurituba, município de 24 mil habitantes, a 218km de Manaus. No pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o MP demonstrou a desproporção entre a condição financeira do município e os valores a serem gastos com os shows. Segundo o IBGE, 51,5% da população de Urucurituba recebe até meio salário-mínimo mensal, e 97% das receitas municipais vêm de repasses estaduais e federais.
Despesa ilegítima
A Corregedoria do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE) e a Procuradoria-Geral do Ministério Público de Contas (MPC) assinaram uma recomendação aos prefeitos de municípios mineiros, alertando que a utilização de recursos públicos para pagar gastos com shows, contratação de artistas e realização de festas pode configurar despesa ilegítima para as prefeituras.
Conforme o documento, a despesa com eventos festivos, principalmente em meio às crises econômica e sanitária, pode se tornar ilegítima, caso comprometa o resultado da gestão pública e a regularidade das contas de gestão. De caráter preventivo, a recomendação foi publicada no Diário Oficial de Contas (DOC).
A despesa com festejos e shows também poderá ser considerada ilegítima se o pagamento de servidores públicos estiver em atraso ou irregular. A recomendação reforça, ainda, que outras inadimplências devem ser quitadas.
Já o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP), de caráter preventivo, recomenda que as despesas com shows e contratações artísticas não podem ocorrer quando comprometem a oferta de serviços públicos essenciais (Educação, Saúde e Saneamento Básico), ou quando contribuem para o desequilíbrio fiscal das contas públicas.
O alerta se dá em função do aumento de casos de jurisdicionados que realizaram despesas discricionárias com festejos em detrimento de investimentos prioritários determinados pela Constituição e pelas leis. O TCE também considerará ilegítima as despesas na hipótese de o município estar em situação de calamidade pública decretada.
Pega Fogo, Cabaré
Pra jogar mais lenha na fogueira, na cartilha que o governo federal enviou aos congressistas com as ações que podem ser contempladas com as emendas parlamentares está a previsão de pagamento de cachês de até R$ 300 mil para bandas ou artistas consagrados. Cada deputado tem direito a emendas que somam R$ 37,6 milhões. Para os senadores são R$ 69,6 milhões.
Um estudo de 2018 do Ministério da Cultura, tomando por base os projetos da Lei Rouanet, mostrou que a cada R$ 1 investido por patrocinadores em ações culturais, R$ 1,59 retorna para a economia diretamente, graças ao movimento da cadeia produtiva do entretenimento, que chega a envolver 60 atividades simultâneas.
Mesmo assim, “Só 16% dos municípios têm uma secretaria de cultura”, observa Daniel Neves, presidente da Associação Nacional da Indústria da Música. “Esse país não é preparado para a sua própria cultura”, adverte.
A Constituição Federal determina que os municípios utilizem pelo menos 25% de suas receitas com educação e 15% com saúde e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabeleceu que o gasto com o funcionalismo público não pode ultrapassar 60% da Receita Corrente Líquida.
Em tempo: sobre o título desta reportagem, “Quanto a Prefeitura pode gastar com show?”, somente a dupla “Bom Senso & Boa-fé” é capaz de responder...