Moeda social resgata cidadania financeira
Brasil se aproxima de 200 moedas sociais em circulação; Congresso Nacional avança na regulamentação e Banco Central vê como riqueza não financeira
16 DEZ 2024 - 15H44 • Por Wilson LopesCriado por uma medida provisória do então presidente Itamar Franco (1º/07/1994), sob desconfiança da população com a eficácia da moeda, o Real completou 30 anos alcançando seu principal objetivo de controlar a inflação e o aumento generalizado dos preços de produtos e serviços que corroía o poder de compra das moedas antecessoras, como o Cruzeiro Real (93/94), Cruzeiro (90/93),
Cruzado Novo (89/90), Cruzado (86/89) e Cruzeiro (70/86).
Contudo, o fortalecimento do Real, que tantos benefícios trouxe para a economia, porém, afastou do sistema financeiro muitos brasileiros que deixaram de perder dinheiro para a inflação para alimentar o apetite voraz das altas taxas e tarifas cobradas pelos bancos.
“Os consumidores brasileiros gastam, em média, um salário mínimo, por ano, com o pagamento de tarifas bancárias, entre pacote de serviços, anuidades e saques de cartões de crédito e taxas de transferências entre bancos”, relata Ione Amorim, economista do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
O Banco Central, em seu ‘Relatório de Cidadania Financeira 2021’, aponta que houve profundas transformações no sistema financeiro, que está cada vez mais digital, impactado pela pandemia da Covid-19. Mas, apesar de o percentual de adultos acima de 15 anos com conta bancária e relacionamento com instituições financeiras também ter evoluído (86,5% em 2018 para 96% em 2020), ainda há 8,1 milhões de brasileiros sem conta no banco.
“Eu desejo que você ganhe dinheiro
Pois é preciso viver também
E que você diga a ele, pelo menos uma vez
Quem é mesmo o dono de quem”
‘Amor Pra Recomeçar’
Frejat
Falhas estruturais do sistema financeiro
E foi nesse ambiente de relativo controle da inflação [onde, depois de 1996, o índice raramente ultrapassou a casa dos 10 por cento ao ano] e de insatisfação com o pagamento de altas tarifas bancárias que começaram a surgir pelo Brasil os chamados bancos comunitários.
Os bancos comunitários funcionam como uma espécie de organização local que presta serviços financeiros solidários, com o objetivo de gerar trabalho e renda em regiões com vulnerabilidade social.
Boa parte desses bancos possui seu próprio dinheiro. É a moeda social, um instrumento criado para lidar com ‘falhas estruturais’ do sistema financeiro. “É uma tecnologia de autofinanciamento: um instrumento de natureza e estrutura contratual, com potencial para resolver ou atenuar o problema do ‘desencaixe’ entre disponibilidade de capital e necessidades não atendidas”, explica Marusa Freire, coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos do Banco Central.
Marco regulatório
Levantamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) estima que há pelo país 189 moedas sociais em circulação, criadas por grupos ou comunidades, com circulação em um território restrito.
O Projeto de Lei 4476/23, do deputado Caio Vianna (RJ), estabelece a definição de moedas sociais, bem como regula a sua emissão e transação através de tecnologia digital, para que sejam lastreadas e indexadas à moeda corrente nacional.
Pelo projeto, a administração pública fica autorizada a contratar os serviços de bancos comunitários para a execução de políticas públicas, conforme regulamentação específica.
Para o deputado, o sucesso de uma moeda social depende da confiança dos seus usuários. “Uma saída para esse problema é a adoção de um sistema imune a fraudes. Isso pode ser alcançado com a adoção de tecnologias de registro distribuído, como a blockchain”. Ele cita como exemplo o município de Indiaroba, no Sergipe, que lançou uma criptomoeda social e já colhe os frutos dessa iniciativa.
A Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados aprovou a proposta que estabelece o marco regulatório para as moedas sociais, que devem ser autorizadas pelo Banco Central. Agora, o PL 4476/23 tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Não é apenas dinheiro dos despossuídos
Fundado em 1998 pela Associação dos Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMOCONP), em Fortaleza, no Ceará, o Banco Palmas foi o pioneiro no Brasil a experimentar o sistema de banco comunitário. A iniciativa previa democratizar o acesso a serviços financeiros e bancários para a população da periferia da cidade, com ampla participação e controle social, mobilização de associações locais, buscando o desenvolvimento socioeconômico de bairros e favelas.
O economista Arilsom Martins do Nascimento, na sua dissertação para Mestrado Profissional em Economia [Moeda Palma e o desenvolvimento sustentável do Conjunto Palmeiras através da economia solidária], da Universidade Federal do Ceará (UFC), relata que o modelo de moeda social adotado pelo Banco Palmas previa recolocar a economia a serviço das finalidades sociais, reintegrando seus valores à esfera sociocultural. “Portanto, ela deve ser percebida como uma instituição com um caráter assumidamente normativo, da qual participa quem congrega dos mesmos valores”, observa.
“Nesse sentido, a moeda social funciona como meio de troca alternativo ou complementar, capaz de gerar melhores condições de vida aos aderentes; e/ou como uma prática de reinvenção da economia, reconstruindo-a em moldes responsáveis e participativos, de forma integrada com as outras esferas da vida.”
“De qualquer forma ela deve ser interpretada como uma relação monetária que procura desmascarar e colocar em evidência as relações de poder que estão por trás das atitudes mercantis em geral e ainda mais especificamente do instrumento monetário tradicional. Não é apenas uma questão de criar um sistema que propicie a inclusão social através de uma produção maior de massa monetária, ou mesmo de gestão coletiva e transparente desse novo dinheiro dos despossuídos, até porque empresas de todo porte irão utilizar de moedas sociais. A ideia tem também uma face mais radical, procura resgatar o dinheiro, a instituição monetária, enquanto instituição social, pretende dar mais benefícios a todos interagindo de forma ampla para melhor socializar ao local”, completa.
Algumas das moedas sociais existentes no Brasil:
- Cocal (São João do Arraial, PI)
- Fundinho (Rio de Janeiro, RJ)
- Gavião (Umarizal, RN)
- Gostoso (São Miguel do Gostoso, RN)
- Itajuru (Cabo Frio, RJ)
- Justo (Justa Troca, RS)
- Moqueio (Belém, PA)
- Prevê (Niterói, RJ)
- Sampaio (São Paulo, SP)
- Vereda (Chapada Gaúcha, MG)
4,5 milhões de Aratus
Indiaroba, no sul de Sergipe, com 18 mil habitantes, viu a economia andar, com uma série de medidas estruturantes, que vão desde colocar os produtores locais nas compras públicas, uma política de crédito popular e à criação de uma moeda social digital.
A moeda social digital, criada em 2022 pelo município dentro das regras monetárias do país, foi batizada com o nome de um marisco comum da região: o aratu. Ela circula virtualmente por meio de um cartão e apenas nos limites de Andiroba. Um aratu (A$ 1) corresponde a um real (R$ 1). Foi com essa moeda que o comércio local se reavivou. Jaine Santos Barreto, dona da Junior Kids, loja de roupas infantis, é uma das 306 empreendedoras da cidade que aceitam o aratu e só tem vantagens para contar do dinheiro indiarobense.
“O aratu é prático, fácil, cai para a gente em 24 horas no máximo. Muito melhor que vender no cartão, por causa das taxas”, diz ela, que já abriu outra loja em Aracaju. “Mas essa unidade de Indiaroba continua sendo a campeã de vendas”, afirma a empresária.
Na esteira da criação do Banco Popular de Indiaroba, o primeiro banco municipal do Norte e Nordeste, e da moeda social, o município garantiu que benefícios locais fossem pagos em aratu. Por volta do dia 10 de cada mês, quando 1.159 moradores recebem recursos da assistência social na moeda local, Isac de Jesus Passos tem que separar um dos três caixas do Mercadinho Itabaiana, do qual é dono, para passar os pagamentos somente com o aratu, a fim de agilizar o atendimento.
“As pessoas que antes recebiam seus recursos em outros povoados e já deixavam o dinheiro por lá ou acabavam fazendo as compras em municípios vizinhos agora priorizam o nosso comércio. O dinheiro circula na comunidade e incentiva outros empreendedores”, explica Isac.
Em dois anos, já circularam 4,5 milhões de aratus em Indiaroba, dinheiro que aquece a economia, eleva arrecadação e desperta o território para oportunidades. Além de asfalto, ruas ganharam lojas de roupas, de celular, sorveterias, salões de beleza e outros estabelecimentos.
20% da economia local em Mumbuca
Criada em 2013 para contribuir com o desenvolvimento econômico e social de Maricá, no Rio de Janeiro, a moeda social Mumbuca completou, em junho, 11 anos de existência. Atualmente, são mais de 130 mil correntistas, entre recebedores de benefícios e empreendimentos cadastrados.
Ao todo, são 20 mil transações por minuto. Entre 2018 e 2024, cerca de R$ 3 bilhões foram movimentados. 20% da economia local passa pela moeda social.
Mais do que números, cada dado representa uma pessoa. E a atuação do Banco Comunitário Popular de Maricá, o Banco Mumbuca, tem o foco de humanizar essa relação. O maior banco comunitário da América Latina tem, ao todo, 133 mil usuários, sendo a maior parte de beneficiários de programas sociais e outros 16 mil comércios e prestadores de serviço.
Grande parte dos diretamente envolvidos com a Mumbuca, seja beneficiário, comerciante ou funcionário do Banco Mumbuca, são mulheres. “Temos vários benefícios em decorrência da moeda, e um dos benefícios indiretos é a empregabilidade, sobretudo para as mulheres. Aqui dentro do banco, o maior fluxo de atendidos e funcionários, o público é majoritariamente feminino”, apontou Manuela Mello, presidente do Banco Mumbuca.
Riqueza não financeira
Para a coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos do Banco Central, há muitas razões para a utilização das moedas sociais. Principalmente no financiamento de pequenas atividades econômicas que são diretamente responsáveis pela geração de riqueza e renda em nível local (pequenas e microempresas e trabalhadores autônomos) e na transformação do próprio sistema de trocas, onde se observa uma
priorização dos interesses da eficiência econômica em detrimento das
necessidades de justiça social.
Segundo Marusa Freire, o sistema gera uma riqueza não financeira, referente à aplicação do capital humano no processo de produção, circulação e distribuição de bens e serviços produzidos na economia real. “Em condições normais, quando o sistema é bem desenhado sem desrespeitar a legislação/regulamentação e é bem administrado conforme princípios éticos, o uso de moedas sociais não afeta o poder dos bancos centrais de controlar a quantidade de moeda e de crédito, não ameaça o papel dos bancos em relação aos sistemas de pagamentos e não coloca em risco a estabilidade do sistema financeiro”, esclarece.
Ela completa dizendo que o desenvolvimento de políticas públicas de finanças solidárias através da emissão de moedas sociais por bancos comunitários pode ser uma condição essencial para a redução das desigualdades sociais e regionais, contribuindo para a erradicação da pobreza no Brasil. “Trata-se de uma ‘nova’ maneira de promover o desenvolvimento da solidariedade em torno do objetivo de diminuir a distância entre os mais ricos e os mais pobres”.
Com informações, Renata Mariz, ASN; Prefeitura de Maricá (RJ); Agência Câmara.
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