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O fim do interior

7/02/2025 - 17:43

A redefinição do papel das capitais e a ascensão do indivíduo como centro de tudo

Nos últimos anos, temos vivido uma inversão migratória. Desde o início da humanidade, as pessoas migram de um lugar para o outro em busca de oportunidades de vida, seja para empreender, plantar, morar perto de onde há bons comércios ou acessar melhores serviços. Esse movimento constante de deslocamento é o que moldou o mundo como conhecemos hoje. Acredito que, devido a essa migração, todas as cidades do planeta foram criadas.

Historicamente, o fluxo migratório foi marcado pelo êxodo rural, com pessoas saindo do interior em direção às grandes cidades, em busca de melhores condições de vida e oportunidades econômicas. Cidades menores sempre foram muito carentes de acesso ao conhecimento, à informação e enfrentavam dificuldades para receber produtos e serviços. Com isso, as pessoas buscavam, em cidades maiores, oportunidades para acessar o que o interior não oferecia. Era comum que as pessoas saíssem para estudar, mudando de um lugar para o outro em busca de educação de qualidade. Não só para buscar conhecimento, mas também em busca de empregos melhores, com mais oportunidades de crescimento e estabilidade financeira.

Eu, por exemplo, nasci em Montes Claros, fui estudar em Ribeirão Preto, depois me mudei para Belo Horizonte e, em seguida, para São Paulo. As pessoas, sempre buscando mais, saem de um lugar para o outro. E, com isso, o interior se esvaziava das suas cabeças pensantes, das pessoas que tinham uma maior probabilidade de desenvolvimento. Os pais que tinham certo recurso financeiro incentivavam seus filhos a deixar suas cidades de origem em busca de acesso a um conhecimento mais avançado e a melhores oportunidades de trabalho.

A volta para o interior

No entanto, o que estamos observando hoje é um fenômeno oposto: um retorno para o interior ou, em muitos casos, uma nova forma de conexão entre o urbano e o rural. Estamos vendo uma inversão migratória impulsionada pelo uso da tecnologia da informação. As pessoas não precisam mais sair de suas cidades para ter acesso a oportunidades que, antes, só existiam nos grandes centros urbanos. A conectividade global permite trabalhar, estudar e empreender de qualquer lugar.

Inclusive, hoje eu voltei para a minha cidade natal, que é Montes Claros. Por quê? Porque eu não preciso mais estar em São Paulo para que minhas atividades comerciais prosperem, para ter acesso a conhecimento ou para manter meus relacionamentos profissionais. Daqui, da minha cidade, tenho uma melhor qualidade de vida, mais tempo e uma saúde mental melhor para colocar tudo isso em prática. Essa é a prova viva de que o centro deixou de ser um lugar e passou a ser o espaço onde o indivíduo encontra equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

O consumidor, as pessoas, sempre buscaram estar perto de onde há um bom comércio e bons serviços, para que pudessem acessar conhecimento, produtos e serviços de qualidade. O que tem acontecido com essa aceleração gigante do uso da tecnologia da informação é que elas não precisam mais sair de suas pequenas cidades ou até mesmo dos bairros periféricos para acessar esses produtos e serviços. O comércio eletrônico, o acesso a cursos online, a telemedicina e o trabalho remoto são exemplos de como a tecnologia eliminou barreiras geográficas que antes limitavam o acesso a recursos essenciais.

Sem fronteiras

Inclusive, enquanto escrevo este texto, daqui a 40 minutos terei uma consulta online com um médico em São Paulo. Isso exemplifica perfeitamente como a tecnologia da informação não só conecta, mas integra a nossa rotina de forma natural, eliminando a necessidade de deslocamento físico para acessar serviços especializados de qualidade.

Por isso, um consumidor que sempre dependeu do comércio e do serviço não depende mais. Agora, são o comércio e o serviço que dependem do consumidor. Eu chamo isso de independência do consumidor, que tem redefinido profundamente a relação entre quem oferece e quem consome. Essa transformação representa uma verdadeira revolução no comportamento de compra, mudando a dinâmica das interações comerciais.

Isso acontece, inclusive, nas próprias cidades. Há 40, 50 anos, as pessoas bem-sucedidas costumavam morar exatamente no centro das cidades. O centro era símbolo de status, onde se concentravam as melhores oportunidades, serviços e facilidades. Com o tempo, essas pessoas migraram para bairros mais afastados, buscando mais espaço, privacidade e qualidade de vida. Hoje, o padrão mudou ainda mais: muitos vivem em condomínios distantes dos centros urbanos, em busca de tranquilidade, segurança e contato com a natureza. 

Esse processo migratório interno demonstra que o movimento de descentralização não ocorre apenas entre cidades, mas também dentro delas. O centro físico perdeu sua importância como referência de sucesso e conveniência. As pessoas buscam qualidade de vida, mobilidade, segurança e bem-estar, independentemente da localização. O conceito de centro, assim como o de capital, está se dissolvendo, dando lugar a uma nova lógica: o centro é onde você encontra o que precisa, não importa onde esteja.

Esse processo migratório não impactou apenas as pessoas bem-sucedidas. Mesmo aquelas com menor poder econômico-social, que residem em bairros mais distantes, dificilmente se deslocam até o centro para adquirir produtos e serviços. Isso porque muitos lojistas e prestadores de serviços perceberam o potencial desses bairros e levaram seus negócios até eles. Dessa forma, o comércio e os serviços passaram a se descentralizar, acompanhando o movimento da população. 
Esse fenômeno revela que a transformação não é exclusiva de uma classe social, mas um reflexo de uma mudança mais ampla no comportamento urbano e nas dinâmicas de consumo. O centro, portanto, deixou de ser o ponto de encontro obrigatório para se tornar apenas mais uma opção em um cenário de múltiplas possibilidades.

Pois bem, seguindo essa ideia, entendemos que, se o consumidor não precisa mais sair do interior para ter acesso a tudo aquilo que ele buscava nos grandes centros — ou, digamos, na capital — isso quer dizer que o conceito de capital-centro está em redefinição. O centro deixou de ser um lugar físico e passou a ser um conceito distribuído. Hoje, o centro é onde o indivíduo está. O acesso à tecnologia e à informação dissolveu as fronteiras geográficas que antes definiam o que era considerado o “centro” de oportunidades, conhecimento e desenvolvimento.

Ou seja, o centro passa a ser onde eu estou e não mais uma referência se moro no interior ou na capital. Isso porque não é mais relevante separar o que é interior e o que é capital em relação ao ser. Podemos comparar esse fenômeno com o que a ciência define como heliocentrismo, onde o Sol é o centro do universo. 

Antes, a capital era vista como o centro do estado, mas agora o ser humano, o indivíduo, é o centro do seu próprio mundo. Então, onde é o centro? O centro é onde eu estou. E é aí que iniciamos o processo de desconstrução do conceito de capital e centro, principalmente no que diz respeito às relações humanas e comerciais.

Essa inversão não é apenas geográfica, mas também simbólica. Ela reflete mudanças profundas na forma como as pessoas enxergam o trabalho, a qualidade de vida e a relação com o espaço. Fatores como o avanço da tecnologia, o trabalho remoto e a busca por uma vida mais equilibrada têm contribuído para esse novo movimento migratório.

O sociólogo Zygmunt Bauman, em ‘Modernidade Líquida’, nos ajuda a entender essa fluidez das relações e da mobilidade humana. Já Manuel Castells, em ‘A Sociedade em Rede’, destaca o impacto da tecnologia da informação, explicando como as redes digitais mudaram a dinâmica da migração urbana e rural. Esse novo cenário rompe com o paradigma de que o sucesso está atrelado à presença física em grandes centros.

Estamos presenciando o que poderia ser chamado de “a nova força do interior” como o conhecíamos, mas não no sentido de desaparecimento. Pelo contrário, o interior está se transformando, deixando de ser apenas um lugar de origem ou de refúgio para se tornar um espaço de novas possibilidades. O interior está mais conectado, mais dinâmico e, paradoxalmente, mais urbano em sua essência, sem perder sua identidade.

Esse fenômeno nos convida a refletir sobre o futuro das cidades, o papel da tecnologia e, acima de tudo, sobre o que realmente buscamos quando decidimos migrar: não apenas oportunidades, mas também pertencimento, equilíbrio e qualidade de vida.

O interior, portanto, não está chegando ao fim. Está, na verdade, começando um novo capítulo em sua história.

Fred Rocha @eufredrocha
Fred Rocha, Pesquisador, Consultor e Palestrante foi reconhecido 4 vezes Profissional de Marketing do Brasil em 2016 e em 2019. É um dos especialistas de varejo mais contratados no Brasil, com mais de 30 anos de experiência acumula 18 negócios de diversos segmentos em seu currículo e 33 países visitados a trabalho. Foi pioneiro no e-commerce no Brasil em 1997 e Autor de dois livros: ‘ManUAU do Novo Varejista’ e o ‘O novo jeito de vender’, pela Editora Gente. Apresentador do Programa Empreender - Rede Globo (MG, SP, RJ, ES, MT e MS). Atualmente, mantém a ‘Venda do Fred’, case no setor de alimentação fora lar na sua cidade natal.

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